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Carta Aberta dos Povos dos Territórios na IX edição do Encontro Nacional da ASA (ENCONASA)
02/12/2016
A IX edição do Encontro Nacional da ASA (ENCONASA) que aconteceu entre
os dias 21 a 25 de novembro, tinha como objetivo refletir a conjuntura atual à
luz de experiências de convivência com o Semiárido que perpassam por áreas como
terra, água, segurança e soberania alimentar e nutricional, economia solidária,
educação contextualizada, direitos das mulheres, biodiversidade, comunicação
como direito, dentre outras.
O Encontro possibilitou a elaboração da Carta Aberta que manifesta os
direitos conquistados e denuncia os direitos ameaçados a todos os povos. A
Carta Aberta foi escrita por
entidades, movimentos sociais e representantes da sociedade civil.
Leia aqui:
CARTA DO IX ENCONTRO NACIONAL DA ASA
Mossoró, 21 a 25 de novembro de 2016
Povos e territórios, construindo
e transformando o semiárido.
De um milhão de mortos a um milhão de cisternas
Há trinta anos, quando lutávamos para enterrar uma
ditadura civil-militar e reconstruir nossa democracia, no Semiárido um milhão
de pessoas morriam em decorrência dos efeitos da seca e da total ausência do
Estado. Centenas de milhares migravam de suas terras em tristes partidas para
outras regiões. Tantos outros e outras vagavam sem perspectivas que não a
morte. Tantos e tantas outras foram exploradas nas indignas frentes de serviço.
As políticas de combate à seca só geraram mais mortes, miséria, fome, sede,
doenças, escassez, saques e mancharam o mapa do Brasil. Eram-nos apresentadas
soluções humilhantes e que tiravam o que ainda nos restava de vida e
dignidade.
Aquela realidade ficou no passado. Vivemos hoje o
quinto ano de uma estiagem ainda mais severa e nenhum ser humano teve sua vida
ceifada pelos efeitos da seca. Esta nova realidade resulta de políticas de
convivência com o Semiárido, pautadas nas estratégias e práticas construídas e
desenvolvidas pelos muitos povos do Semiárido que se articulam na ASA. Agricultores
e agricultoras, organizações e centros de pesquisa, contribuíram para que estas
práticas se tornassem políticas públicas, rompendo com esse ciclo de negação de
direitos e de morte. Um milhão de cisternas, um milhão de famílias com acesso à
água potável enfeitam a paisagem do semiárido. Construir a convivência
com o Semiárido é romper com 500 anos de negação de direitos e com o jogo
político que alimenta a indústria da seca.
Essa mudança de paradigma foi construída passo a
passo pela incrível força organizativa e pela criatividade dos povos do
semiárido e só foi possível porque se estabeleceu uma nova relação entre Estado
e Sociedade, na qual a sociedade civil organizada teve vez e voz, participando
em parceria da formulação, da execução e do controle de políticas
públicas.
Anunciamos os Direitos Conquistados
O Semiárido brasileiro hoje é
reconhecido pela força, autonomia e capacidade organizativa do seu povo.
Juntos, construímos o maior programa de captação e armazenamento de água da
chuva do mundo, respondendo aos complexos desafios planetários das mudanças do
clima e da escassez de água. A
convivência com o semiárido é o nosso jeito de enfrentar os efeitos das
mudanças climáticas, de preservar a caatinga e os cerrados e de produzir de
forma agroecológica. Articulamos e executamos projetos e ações de armazenamento
de água e forragem, resgate e conservação de sementes crioulas, fundos
rotativos, organização e empoderamento de mulheres e jovens, democratização da
comunicação, de auto-identidade e reconhecimento de povos indígenas e
comunidades tradicionais, de educação contextualizada para convivência com o
Semiárido, produção agroecológica e economia solidária. Passos iniciais, mas
fundamentais, rumo à convivência com o semiárido foram dados. Eles
se materializam em conquistas que representam a autonomia de:
§ mais de 4 milhões de
pessoas com acesso à água para consumo humano;
§ mais de 600.000 pessoas
com acesso à água para a produção de alimentos;
§ mais de 3.500 escolas com
cisternas que possibilitam a continuidade das aulas para mais de 175.000
estudantes;
§ mais de 1.000 Casas de
Sementes estruturadas por mais de 20.000 famílias, dentre as quais temos
centenas de guardiãs e guardiões que protegem a riqueza genética acumulada
pelos povos da região.
Nossa caminhada tem
possibilitado a troca de conhecimentos e ampliado a capacidade dos povos do
Semiárido de promover seu bem estar e de construir estratégias para enfrentar seus
problemas. Esses saberes acumulados servem de inspiração e fonte de
aprendizados para outros povos e nações, tanto em relação ao acesso à água e à
soberania e segurança alimentar quanto em relação à gestão de programas
construídos em parceria com o Estado.Sabemos o valor de cada Direito
conquistado e sabemos que ajudamos a construir um outro semiárido, mas também
sabemos que muito há para ser construído. Mais de 350.000 famílias ainda não
têm sua cisterna de água para beber, mais de 800.000 famílias não tem cisterna
para armazenar água para produção, muitas comunidades vêem ameaçada sua capacidade
de guardar suas sementes. Os desafios das mudanças do clima exigem maior
atenção à captação de água de chuva também em áreas urbanas e soluções para o
reuso de água. Muitas são as famílias que clamam por reforma agrária, muitos
são os povos indígenas e comunidades quilombolas que lutam pelo reconhecimento
de seus direitos territoriais. O respeito à diversidade sexual e religiosa
persistem como desafios que mal começamos a enfrentar.
Nossos sonhos e nossas lutas
mudaram o semiárido. Avançamos e não aceitamos retroceder. Semiárido Vivo, Nenhum Direito a Menos!
Denunciamos os Direitos Ameaçados
Enfrentamos, no momento presente,
duros golpes contra nossas conquista e nosso futuro. A lógica perversa de
deixar de investir na garantia de direitos sociais para alimentar a ciranda
financeira dos ricos está sendo implementada de forma avassaladora. Profundos cortes
orçamentários vêm sendo feitos nos programas sociais, inviabilizando políticas
de apoio à agricultura familiar, a povos e comunidades tradicionais, a garantia
de segurança alimentar e nutricional. Esta lógica perversa se manifesta de
forma assustadora na proposta de emenda constitucional que visa congelar os
investimentos sociais nos próximos vinte anos.
A extinção de ministérios e
secretarias voltados ao desenvolvimento agrário, aos direitos humanos, à
igualdade racial e às políticas para mulheres exemplificam o retrocesso
político e social que estamos vivendo, mas não são as únicas perdas. Os cortes e/ou enxugamento de programas
públicos como o PAA, PNAE, Minha casa Minha Vida e o cancelamento da
contratação da assistência técnica rural comprovam a diminuição da importância
da agricultura familiar e camponesa para os atuais governantes. O projeto de Lei orçamentária para o ano de
2017 reduz 630 milhões do investimento nas políticas publicas que atendem a
agricultura familiar e camponesa, os povos e comunidades tradicionais, a
reforma agraria e o acesso a água. Essa é a mensagem clara do atual governo
para nosso campo, para nosso povo e para nossa gente.
A outra face do retrocesso que
enfrentamos é o aprofundamento da ofensiva de criminalização contra os
movimentos e organizações sociais e suas lideranças, que nos remete aos
sombrios tempos da ditadura. Há um endurecimento da violência e da repressão
contra os setores organizados da população em luta por seus direitos e que
estão sofrendo os efeitos diretos dessa mudança de comportamento institucional,
expresso nas forças policiais e jurídicas, com apoio do poder executivo e de
setores do poder legislativo. Coerções, grampos, prisões, constrangimentos,
despejos, táticas de força e arbítrio, que se agravam a cada dia.
É importante destacar que este
foi também um golpe midiático, possibilitado pelo monopólio das concessões de
rádio e TV do país. É impossível pensarmos uma nação justa, sem democratizarmos
a comunicação. É preciso uma revisão ampla dos contratos e concessões e o
estímulo de processos comunitários e populares de comunicação.
Neste momento temos um projeto
de Estado submisso aos interesses do capital financeiro, das grandes
corporações e do agro-hidronegócio avança no Brasil, se impõe mais do que nunca
a necessidade de fortalecermos nossa união, nossa organização e nossa
capacidade de resistência e luta. É
necessário somar forças aos movimentos e articulações companheiras no Brasil e
no mundo e criar espaços de convergência para fortalecer as pautas comuns. Somos
desafiados a ocupar espaços para garantir a continuidade de nosso projeto de
Convivência com o Semiárido, contribuindo assim com um projeto de Nação
soberana e, de fato, democrática.
SOMOS
POVO DO SEMIÁRIDO QUE RESISTE E CONSTRÓI A CONVIVÊNCIA
Construção
de Forças e Convergências para a Luta
A convivência com o semiárido
nos ensinou a força da resistência e da resiliência, nos ensinou que nossos
sonhos e nossas lutas mudam o mundo. Somos muitas e muitos e contamos ao longo
de nossa história com o fundamental apoio de agências de cooperação, governos e
instituições públicas e privadas. Nossa diversidade nos fortalece e somos
desafiados e desafiadas a criar convergências que potencializem nossas forças
na afirmação da democracia e dos direitos. Somos desafiados e desafiadas a inovar
e ampliar nossa capacidade de lutas. É imperativo que fortaleçamos nossas
raízes, em cada comunidade, defendendo nossos territórios, nossos direitos, nossas
políticas, nossas conquistas.
Somos herdeiros e herdeiras das
lutas de Canudos, do Quilombo dos Palmares, de Caldeirão, de Pau de Colher.
Somos herdeiros e herdeiras de Ibiapina, de Margarida Alves, do Conselheiro, de
Pe. Cicero, do Beato Zé Lourenço, de Nísia Floresta, de Zumbi e Dandara de
Palmares, de Josué de Castro. Somos o povo do Semiárido e em nossos territórios
resistimos e lutamos, transformando desafios em conquistas!
Somos neste momento desafiador, reunimos nossas forças para lutar:
Pela
manutenção das políticas de convivência com o Semiárido.
Repudiamos as novas formas de dominação,
inspiradas na velha prática do coronelismo sertanejo, que tem o DNOCS como
símbolo e que excluem as populações e fortalecem a política do combate à
seca.
Exigimos a continuidade de investimentos em
programas e políticas como o P1MC, P1+2, Sementes do Semiárido, Cisternas nas
Escolas, PAA, PNAE, ATER, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Seguro Safra,
Pronaf, Aposentadoria Rural, que possibilitaram a saída do Brasil do Mapa da
Fome e, sobretudo, garantiram uma vida digna as mais de 23 milhões de pessoas
que hoje vivem no Semiárido.
Assumimos a luta pela Reforma Agrária junto a
diversos movimentos e organizações populares, na perspectiva da democratização
dos territórios, onde povos são encurralados pelo monopólio da terra por
fazendeiros e grupos ligados ao Agro-hidronegócio. Na perspectiva de acesso
pleno à terra de tamanho adequado às realidade Semiáridas.
Cobramos que o atual governo honre os contratos
pré-estabelecidos, a exemplo daqueles firmados com a ASA para a execução do
Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido,
no qual ainda são devidos recursos na ordem de R$ 70 milhões.
Para avançarmos na construção de um Semiárido
Vivo e de uma sociedade mais justa igualitária.
Assumimos o fortalecimento da luta em defesa da
democratização da comunicação junto a outras redes e fóruns, além de fazermos
incidência política sobre o tema, especialmente no que se refere à
regulamentação mídia. Também queremos avançar na formação dos comunicadores e
comunicadoras populares nos territórios do Semiárido e no apoio aos meios de
comunicação populares.
Assumimos priorizar a participação das juventudes
com suas pautas, debates e anseios nos fóruns microrregionais, estaduais e
nacional, contribuindo com a unificação das lutas no campo e na cidade pela
garantia de direitos. Damos todo nosso apoio aqueles e aquelas que estão, nesse
momento, ocupando escolas e Universidades em repúdio a PEC da Morte.
Assumimos a luta por escolas no campo, que
valorizem os saberes do Campo e que garanta a interação com a comunidade onde
se encontram. Colocamo-nos contrários ao processo criminoso de fechamento das
escolas, da reforma do ensino e de uma pretensa escola sem partido. A favor de
uma Educação Pública e de qualidade, lutaremos pelas condições adequadas e
necessárias para que professoras e estudantes possam vivenciar um processo
educativo adequado às necessidades e potencialidades da região, em especial com
acesso à água para consumo humano, não interrompendo o ano letivo em períodos
de estiagem prolongada.
Assumimos o compromisso com o fortalecimento da
auto-organização das mulheres do campo, entendendo que o empoderamento das
mulheres só é possível através criação de espaços formativos, grupos e
organização da luta feminista. Afirmamos a necessidade urgente da ASA em
assumir como política a equidade de gênero dentro das instâncias e espaços
organizativos e decisórios da rede. Não existe convivência com o Semiárido sem
o enfrentamento da cultura do estupro e da violência contra as mulheres nas
suas várias dimensões, abrangendo a violência física, violência psicológica,
violência patrimonial. É preciso incidir politicamente para a ampliação da Lei
Maria da Penha para o campo. Vamos lutar pela desconstrução da cultura do
machismo e afirmar os princípios feministas, fortalecendo ações dos movimentos
de mulheres e a Marcha das Margaridas e das Mulheres Negras. Sem feminismo
não há convivência com o Semiárido!
É NO SEMIÁRIDO QUE A VIDA PULSA, É NO SEMIÁRIDO
QUE O POVO RESISTE!!!!