Entre concas de licuri e sonhos possíveis: o intercâmbio a Jacobina e Caém foi um sucesso

21/07/2014

"Essa mostarda dá pra trabalhar lá. Tá linda, Deus benza!", falava Dona Marizete enquanto Seu Juscelino apontava e gritava "Olha gente, a cisterna calçadão ali!”. "Lá nós não temos desse repolho não, mas vamos ter né?", questionava alto a agricultora Ivani num esforço tremendo para se fazer ouvir diante de tantas pessoas falando ao mesmo tempo. “ E como é o nome dele mesmo? Faz salada também? Deus benza!!!!!”, insistia Dona Ivani em meio a muitos comentários maravilhados onde a palavra de ordem era "Deus benza!”

Essa foi a primeira reação dos 37 agricultores(as) oriundos de comunidades rurais dos municípios de Lamarão, Retirolândia e Riachao do Jacuípe no momento inicial da visita à Comunidade de Inácio João, onde foram muito bem recebidos por Dona Izabel, Seu José, Janete e outros agricultores(as) do local que apresentavam com orgulho seus quintais produtivos.

Para muitos era a primeira vez que participavam de um intercâmbio, e nessa ação do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da Articulação Semiárido Brasileiro ( ASA), em parceria com o Movimento de Organização Comunitária (MOC), tiveram a oportunidade de compartilhar experiências, trocas de saberes em torno das práticas agroecológicas e conhecer tecnologias sociais de convivência com o Semiárido. O intercâmbio aconteceu entre os dias 17 e 18 de julho, nos municípios de Caém e Jacobina.

Conca de Licuri
Com sempre um “Deus benza!” como complemento a cada nova propriedade visitada e já com muitas mudas e sementes coletadas na esperança da reprodução em seus quintais, os agricultores(as) descansaram um pouco na casa do Seu José numa pausa para a refeição. Grata foi a surpresa feita por Seu José nesse primeiro dia de intercâmbio com o saudável almoço preparado com galinha caipira e legumes fresquinhos colhidos ali mesmo, servidos em “concas de licuri” em substituição aos tradicionais pratos. Quem é do semiárido brasileiro sabe que o licuri é uma palmeira nativa da caatinga e a “conca”, em alguns lugares conhecida como “cimba”, tem a função de proteger as mini flores amarelas antes da germinação. Aqui também inspirou Seu José para servir o almoço da turma. “Deus benza, quanta criatividade!”, ouvia-se.

Para finalizar esse encontro na comunidade, uma roda de conversa foi organizada por Kamilla Ferreira, Coordenadora do P1+2 e técnica do MOC. Janete com orgulho iniciou a prosa compartilhando sua experiência: “Tudo começou com o curso que fiz na Cofaspi sobre cisternas de produção. Fiz depois que já tinha ido para São Paulo e passei 14 anos fora. Quando voltei e depois do curso aprendi sobre a convivência com o semiárido, sobre a agricultura orgânica, participei de intercâmbios, e de mutirões”, conta Janete aos visitantes.

E sob os olhares atentos de todas(os) e de Robson Aglayton e Farmásio, representantes da instituição parceira do MOC citada por Janete, a Cooperativa de Trabalho e Assistência à Agricultura Familiar Sustentável do Piemonte – (Cofaspi), que ali nos apresentavam as comunidades visitadas, continua: “Aí tudo mudou de água pra vinho, porque depois de saber que o natural além de mais gostoso é mais saudável, eu mudei. Hoje produzo o que como e ainda sobra pra vender na Feira Agroecológica e ter uma renda extra, além de ajudar no mais importante que é melhorar a saúde das pessoas que compram nossos produtos produzidos sem agrotóxicos”.

Assim como a comunidade de Cocho de Dendro que estava na programação, mas não pode ser visitada devido a dificuldade do acesso por conta das chuvas, a comunidade de Inácio João fica no município de Caém, cidade oriunda do desbravamento iniciado no final do século XIX, por garimpeiros em trânsito para as minas de ouro de Jacobina. Hoje já não existem os garimpeiros, mas os moradores daquela comunidade são desbravadores porque ali aprenderam a promover qualidade de vida, a viver com saúde através de práticas agroecologicas, enfim, aprenderam que tudo isso somado a exemplar união, trabalho, dedicação e organização demonstrada por eles, é possível conviver muito bem com o semiárido brasileiro.

Feira Agroecológica
O dia ainda ensaiava os primeiros raios quando os agricultores(as) começaram a se arrumar para o segundo dia do intercâmbio. Estavam hospedados em Jacobina e muitos deles visitavam pela primeira vez aquele município baiano rodeado de majestosas serras, localizado numa região favorecida por canyons, desfiladeiros, lagos e belas cahoeiras. Conhecida como a Cidade do Ouro, uma herança das minas de ouro que atraíram para o local, bandeirantes e portugueses no início do século XVII, Jacobina desde 2010 também atrai muita gente para a Feira Agroecológica que acontece às quartas e sextas, com o apoio da Cofaspi. Nesse espaço os agricultores(as) familiares da região comercializam flores, produtos orgânicos, hortaliças, verduras e frutas totalmente livres de agrotóxicos, como os produzidos nos quintais de Janete, Dona Izabel e outros visitados no dia anterior.

“Bem que Dona Izabel falou que vendia bem as verdura na feirinha”, lembrou Dona Edelzuite ao testemunhar algumas vendas na Feira. Juntos a populares que faziam suas compras, muitos agricultores(as) não resistiram e compraram. Marlene comprou cenouras “Mais bonita que as nossa, Deus benza!”, outros compraram hortaliças diversas e, curiosos, ainda tiravam dúvidas. Dona Maria Nilza que a tudo observava, num tom de voz baixo, como se estivesse falando para si mesma afirmou: "Nós vamos trabalhar na nossa roça lá em Lamarão pra dar esse mesmo significado na nossa roça". Apesar de baixinho a mensagem foi ouvida e não faltou quem concordasse com Dona Nilza. "Vamos sim, vamos sim”, ressaltavam.

A chuva fria que teimava em provocar o frio não impediu que uma parte do grupo aproveitasse um pouco mais da feirinha enquanto outra subia ao Morro do Cruzeiro, local de fé cristã que também permite uma visão panorâmica da cidade. Cá em baixo, dispostas em barracas padronizadas as agricultoras feirantes não disfarçavam a satisfação pelas vendas do momento e pelos muitos elogios recebidos. Por ser um local onde são agregados valores e saberes populares de agricultoras(es) além de fortalecer a economia local, os elogios são inevitáveis.

Sonhos possíveis 
Antes de retornar para seus municípios de origem e encarar alguns quilômetros de buracos na pista, o almoço e a avaliação do intercâmbio aconteceram na sede da Cofaspi. Ali Robson ressaltava que já existem dez Feiras Agroecológicas no Território Piemonte da Diamantina, região onde fica Jacobina, Caém e mais oito municípios baianos. Explicou que cada uma delas é autônoma na sua constituição e organização, que todos tem o regimento interno e que cada barraca pertence a uma comunidade. Antes de alguns momentos de reflexão, cantos e de boas gargalhadas promovidas pelos causos contados pelos agricultores e por ele próprio, Robson Aglayton enfatizou: “Aprendam a pegar seus sonhos e transformar esses sonhos em realidade. É possível”. A satisfação era geral e o gostinho do quero mais era visível. No início da tarde o ônibus partiu para onde viera e levou consigo os sonhos possíveis de cada um. E só para garantir que serão transformados em realidade, ... “Deus benza!!”
 
Texto e fotos: Zezé Esteves - Comunicadora Popular ASA/MOC 


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