Remanescentes de Quilombo: nova história sem “Isauras” e sem “senhores”

02/10/2014

O dia amanhece sem perspectiva de sol e o destino inicial é o município de Biritinga, comunidade de Vila Nova, a 123 km de Feira de Santana. Numa comunidade outrora povoada por escravos fugitivos hoje sem “Isauras” e sem “senhores” entre suas poucas ruas empoeiradas, ali vivem alguns homens e mulheres que desenvolvem atividades coletivas na geração de trabalho e renda, reunindo forças, ações e sonhos. 

São pessoas que escrevem a história do lugar de outra forma. Uniram-se, fortaleceram-se. Numa roda de prosa com alguns membros da Associação Comunitária Vilas Unidas, que fazem parte do grupo de produção de alimentos, página a página dessa história foi se revelando aos poucos.  “Tudo iniciou no final de 2010 quando começamos a produção com o cultivo de hortaliças, a fabricação de sequilhos e polpa de frutas, e agora já comercializamos até para o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e o Programa Nacional da Alimentação Escolar - PNAE”, relata orgulhosa Maria José Borges, logo interrompida por seu Jacinto Vieira Costa, ex diretor da Associação. 

“Antes disso tudo, em 2008, uma assistente social daqui resgatou o trabalho com artesanato de palha, depois conhecemos a Arco pelo Secretário de Agricultura de Biritinga e começamos a ir para as reuniões e apresentamos o grupo de mulheres, mas as mulheres não iam. Depois foi indo de uma a uma, até fortificar o grupo. Tivemos muito incentivo do MOC e da Arco ertão Bahia, nos motivando a participar das discussões sobre economia solidária, feiras da agricultura familiar, reuniões, assembléias e cursos comunitários. Aí sim, começamos a produção em 2010”, lembra seu Jacinto.

Sobre os cursos, Maria José complementa: “Além do aprendizado, troca de experiências em intercâmbio, aprendemos a ter coragem de falar. A gente antes apenas balançava a cabeça para sim ou não. Agora aprendemos a falar do nosso jeito. Eu me garanto para falar com gestores de escolas ou qualquer um em qualquer lugar, me garanto!”, diz orgulhosa.

A Associação, hoje presidida por Arilma dos Santos Souza, é filiada a Arco Sertão Bahia no Território do Sisal,  conta com 115 associados, mas só dois homens e onze mulheres fazem parte do grupo de produção que vêm diversificando a produção de alimentos para a geração de trabalho e garantindo uma renda mensal, bem como a melhoria da qualidade de vida. São produtos da agricultura familiar e economia solidária, que garantem respeito ao meio ambiente e não envolvem o trabalho infantil. 

O tempo passa e depois de saborear o suco de frutas com polpas feitas ali mesmo, a prosa continua sob um sol escaldante no quintal produtivo da própria Associação, ao lado de sua cisterna, uma das sete tecnologias do povoado que foi contemplado com dois barreiros e duas cisternas do Projeto P1+2 (Uma Terra e Duas Águas) da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Ali quem até então permanecia calada resolve falar: “Tá vendo essas hortaliças aqui? A gente vende na própria comunidade. Saio com o carrinho no domingo pela manhã e vende tudo que tiver nele: coentro, cebolinha, couve, quiabo, caxixe e outras coisinhas que temos aqui”, fala com brilho nos olhos Joiceane S. Dantas que também fabrica sequilhos e pãezinhos com os outros membros do grupo. 

Conquistas
Recentemente constituíram a Cooperativa de Agricultores Familiares e Quilombolas Vilas Unidas – Cooperaq  e também conquistaram uma Unidade Produtiva, recém construída e ainda em fase de acabamento financiada pela Setre/Seagri e STM, que enche de orgulho a todos. Ali, além da produção das polpas, sequilhos, pãezinhos e geléias, as empreendedoras terão mais espaço para apostarem nos seus sonhos, crescimento do grupo e na ampliação de acesso ao mercado institucional. Hoje já participam de exposições, feiras em Shopping de Feira de Santana e feiras solidárias locais, municipais, estaduais e nacionais.

Adquiridos com muito trabalho, por doações ou através de financiadores dos projetos do MOC/Arco Sertão Bahia e instituições parceiras, a exemplo do Instituto Consulado da Mulher e da Yamana Gold,  o grupo também já conquistou freezer, despolpadeira, forno, recursos para compra de embalagens, motos e equipamentos. 
 
Tradição
Em 21 de junho de 2010 a comunidade de Vila Nova foi certificada como Remanescentes de Quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Entretanto, aspectos da sua cultura Quilombola no povoado são materializados através do artesanato, chapéus e esteiras feitos de palhas de uma palmeira nativa da região chamada Ariri. Recentemente as mulheres do grupo de artesanato migraram para o grupo de produção de alimentos, contudo a arte continua sendo feita de forma individual. 

Dona Jeronice Luciano dos Santos, esposa de seu Jacinto e mãe de Marina Costa, 22 anos, que também fazia parte do grupo e agora Diretora Financeira da Arco Sertão Bahia, é uma das pessoas que garante que a tradição do artesanato de palha permaneça viva na comunidade.”Faço o artesanato por amor. Faço e levo às feiras solidárias para vender ou levo para o Armazém da Agricultura Familiar da Economia Solidária, em Serrinha”, ressalta.

Para entender melhor o artesanato de palha no cotidiano dessas pessoas, arte passada de geração em geração, é preciso entender a origem da comunidade.
 
Remanescentes Quilombolas
A primeira página dessa história, remonta a 1886 quando, segundo seu Jacinto, uma escrava fugida, chamada Filipa Preta teve duas filhas com o dono da senzala, o Tenente Eloir. “Uma das filhas de Filipa, chamada Hostiana, casou com Pedro Cabeça e veio morar aqui nas chamadas “Terras do sem fim”, que eram terras sem dono, mais tarde doadas pela igreja aos escravos fugidos. Pedro Cabeça para ter domínio sobre as terras passou a abrigar escravos fugidos para viverem nestas terras”, conta numa maestria de historiador.

 “Do município de Ouriçangas vieram várias escravas fugidas do castigo do tronco da fazenda Ouricanguinha. Também vieram alguns escravos libertos por cartas de alforria”, relata sob os olhares atentos dos presentes. 

Na Comunidade de Vila Nova o que caracteriza o quilombo, não é o isolamento e a fuga dos escravos que ali povoaram e sim a resistência e a autonomia dos seus descendentes. E assim, vão escrevendo páginas de sua história buscando o empoderamento social e econômico através da prática da agricultura familiar, do comércio justo e do desenvolvimento sustentável e solidário. História sem “Isauras e sem senhores” em todas suas páginas.
 
Por:
Maria José Esteves
Programa de Comunicação do MOC



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